Sunday, April 30, 2006

reflexões à beira-vida



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... a areia dos tempos, aquela que, finíssima, a cada instante, esculpe nas linhas do meu rosto a história que hei vivido,
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nela se esboroam os granitos da minha exaltação, os castelos da minha soberba... então detenho-me... detenho-me e contemplo, que


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«[...] os tempos do criador são
Como cadeia de montes,
Que em altas vagas de mar em mar
Avança sobre a terra, [...]»
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(...)
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Fontes: Christensen, K., «Hour glass»; Desconhecido, «Czorsztyn» (ruínas do castelo de); Isabey (?) «Effet de vagues»; Hölderlin, «À Mãe Terra, Cântico dos irmãos Ottmar, Hom e Tello».

Tuesday, April 25, 2006

Sacrifício

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«Entrega sempre a tua beleza

sem cálculo, sem palavras.

Calas-te. E ela diz por ti: eu sou.

E com mil sentidos chega,

chega finalmente a cada um.»

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«Acontece em cada pulsação do teu sangue.

Não há um instante que não possa ser a água do Paraíso.»

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Fontes: Rilke, R.M. «Inicial», in O Livro das Imagens, Borges, J.L., «Doomsday», in Os Conjurados.

Friday, April 21, 2006

Percurso




Num campo de papoilas
O meu sonho
Num oceano frio
O teu olhar
Nas areias da praia
O teu cabelo às ondas
No vento do deserto
O meu amar

Na curva do caminho
O teu ar sério
No cume da montanha
O meu querer
Numa cidade à noite
O teu mistério
Num vale de espera cor-de-nada
O meu sofrer

Nas asas de uma pomba
As mãos com que te afago
Na palidez da Lua
O teu sorrir
Numa noite sem estrelas
O teu sono
Num rio impetuoso
O meu sentir

Num lago gelado
A minha mágoa
Numa manhã cinzenta
O teu torpor
O teu desejo
Numa poça d'água
Numa terra distante
O meu amor

Num prado verdejante
A minha esperança
Numa ilha deserta
A minha solidão
Num livro em branco
Meu sonho de criança
Numa história de Amor
A minha inspiração...

Monday, April 17, 2006

Melro da minha Rua



Um melro chegou hoje à minha rua
Uma nota laranja a sair-lhe do bico
Sem cerimónias ou qualquer arrebito
Apesar do fato cor-de-noite-sem-lua.


E foi pousar no alto e velho choupo,
Quase a chegar ao céu de tanta idade,
A sua vibrante e fresca melodia
Feita de ardentes assobios e trinados.



Por ali se deixou ficar um pouco
Numa canção que não era de luto nem saudade,
Perscrutando o Sol e o verde-tenro deste dia,
Alheio às gentes e aos ruídos loucos da cidade.




Depois foi voando de árvore em árvore
Alegrando as tílias, as relvas, o plátano
Estremeceu com o riso d'água das crianças
Que corriam atrás dele ao pé do lago.



E aquela contagiante sinfonia
Nascida poema cor-de-noite-escura
Foi espalhando generosamente o amor
Neste jardim que é a minha rua...

Sunday, April 16, 2006

os acasos da fortuna e o destino





... acasos tais, quais duros medos do mar incerto,
senão sombras duma mais fria floresta de enganos,
[mas nós] tímidos e ledos, sabemos contudo que
quando um deus aparece,
sobre céu e terra e mar
vem claridade que tudo renova



«[...] Pois moderado toca, sempre sabedor da medida
Só um momento as moradas dos homens
Um deus de improviso, e ninguém sabe: Quando?
E a insolência pode então passar-lhe por cima,
E a ferocidade tem de vir até ao lugar sagrado
De confins longínquos, exerce, com mão rude, sua fúria,
E encontra nisso um destino; mas gratidão,
Nunca ela segue após o presente dado pelo deus;
Com exame profundo é isto de aprender.[...]»
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«[...] Também, se o doador não poupasse,
Já há muito da benção do lar
Nos teriam ardido tecto e soalho. [...]»
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Fontes: G. Doré (paisagem alpina) e J.M.W. Turner (incêndio); Luís de Camões, Os Lusíadas; Hölderlin, «Ó Conciliante, tu que, já não crido...» (3ª versão) e «A festa da paz», in Poemas.


os acasos da fortuna e o destino


... seguindo a pista daquele anel, na senda da Luz, detenho-me hoje perante a história de

«Um homem pardo. A equívoca fortuna
fez com que uma mulher não o amasse;
[...] Terá pensado
acabar com a vida. Não sabia
que essa espada, esse fel, essa agonia,
eram o talismã que lhe foi dado
para alcançar a página que vive
para lá da mão que a escreve
[...]
Cumprido o seu labor, foi obscuramente
um homem que se perde entre a gente;
deixou-nos coisas imortais.»

... e de um exemplo paradoxal: o de algumas dores que antecederam o parto de Roma, motivadas, justamente, por um tal equívoco
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Fontes: Borges, J.L., «Henrique Banchs», in Os Conjurados, 1985; Barbieri, G.F., "La morte di Didone", 1631.

Thursday, April 13, 2006

horizontes de realidade

... horizontes com respeito a este oceano que nos embala, a este mundo que nos hiperliga... sim, este mesmo que agora experimentas, enquanto a ti mesmo(a) te inquietas e o avalias... sim, este mesmo que não tem para ti outro sentido senão aquele que a tua experiência, as tuas ideias e as tuas valorizações lhe atribuem... e que entretanto se mantém na sua própria, excêntrica rota de ser...



Saberás tu (?), que

«[...] Em vão escondemos também o coração no peito, em vão
Mantemos o ânimo ainda, mestres e meninos, pois
Quem quereria impedi-lo e quem quereria impedir-nos a alegria?
Fogo divino incita também, de dia e de noite,
A partir. Vem, pois!, pra contemplarmos o espaço aberto,
Para buscarmos algo de próprio, por longe que esteja. [...]»
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«[...] Pois os que só do que morre cuidaram, a terra os recebe;
Mas mais se aproximam da Luz e do Éter
Os que, fiéis ao íntimo amor e ao divino espírito,
Esperando e sofrendo e com calma o Destino venceram.»
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Fontes: Husserl, E., La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale; Hölderlin, «O pão e o vinho» e «Deuses andaram outrora», in Poemas; Nasa, Nebulosa galáctica (1ª imagem)Ernst, M., 2ª imagem(Lua (?)).

Tuesday, April 11, 2006

Mar


Mar,
Que te espraias
Pelo meu pensamento
Que me corres nas veias
A todo o momento
E invades o meu sentir
Com todo o teu alento,

Aqui estou eu
Sentada à tua beira
Salpicada pelo teu perfume inebriante
Na areia molhada
De azul e branco
Viajando
Pelo infinito do teu olhar azul
A ouvir o teu conselho
Os teus lamentos
O teu canto...

E, eterna confidente que de ti sou,
Te faço meu eterno confidente:
Eis que pego num pedaço de concha,
Numa folha de areia e sal
E te escrevo estas linhas
Indeléveis,

Tão somente...

Como a Noite e o Dia

E eis que, por artes da Lua- Feiticeira, sua irmã, toda a emoção, toda a tranquilidade e toda a solidão das estrelas se dissolvera sobre o lago, e Ela, vestida de negro e ouro, acabara de chegar.
Mas era tarde. O barco estava vazio. Ele, o outro Viajante, já se tinha recolhido para renovar as energias recebidas de seu pai, o deus-Sol, e para voltar na madrugada seguinte.
Apesar de todas as magias, Ela chegava sempre tarde, em cada dia.
E, gémeas as suas almas, incansáveis numa vã procura, numa eterna navegação, sonhavam com o momento mágico em que, talvez numa outra era, noutra galáxia, numa outra esfera, quando disso fossem merecedoras, se haveriam de encontrar...
Enquanto isso, e sem a consciência de que se revezavam consecutiva e repetidamente, Noite após Dia, Dia após Noite, completando-se, lá se iam inspirando mutuamente e inspirando também, cada um à sua maneira, os homens e as mulheres daquele planeta azul, que também eles ansiavam pelo seu verdadeiro Amor...

Monday, April 10, 2006

o pão e o vinho


ontem, comovi-me de ler que
toda a existência do meu ser se pode identificar, afinal,
com o seu encontro com a vida
e com o espectáculo de si mesmo que nela se lhe entrega



Estão reunidos, perturbados, admirados,
à volta dele, que como um sábio se decide
e que se vai de junto dos seus
e que estranho e fugaz passa ao seu lado.
A antiga solidão cai sobre ele,
aquela que para os seus profundos feitos o educou;
agora voltará a passar pelo jardim das oliveiras
e aqueles que o amam fugirão dele.
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Convocou-os para a última ceia
e (como um tiro afugenta as aves
do trigo) afugenta ele as suas mãos dos pães
com a sua palavra: regressam voando até ele;
assustadas adejam à volta da mesa
procurando uma saída. Mas ele
está em toda a parte, como um crepúsculo.



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Fontes: Levinas, E., The Theory of Intuition in Husserl's Phenomenology; Rilke, R.M., «A Ceia», in O Livro das Imagens (ênfase minha).

Sunday, April 09, 2006

Ocaso

O dia
De olhos lavados
Fatigados por tanta beleza
Vai repousar
Enfim...


A noite
De olhos cravados
No pico da subtileza
Embalando o mar
Segredando à luz
Mãos postas ao Céu
A chamar por mim...

Saturday, April 08, 2006

o anel e a noite



diamante branco puro, ligado por ouro a uma pérola de matiz dominante,
assim me feriu hoje no flanco a Providência indecifrada da minha vigília...


«[...] Vem também misteriosa; a noite, a sonhadora, vem,
Cheia de estrelas e certo bem pouco cuidando em nós,
Lá vem a admirável, a estrangeira entre os homens,
Com seu brilho, triste e faustosa, por sobre os cumes dos montes.

De maravilhar é a graça da Sublime e ninguém
Sabe donde ela vem e o que dela nos pode suceder.
De tal modo ela move o mundo e a alma esp'rançada dos homens,
Nem mesmo um sábio compreende o que ela prepara, pois
Assim o quer o Deus supremo, que muito te ama [...]»


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Fontes: Hölderlin, Poemas, Atlântida, Coimbra, 1959; Karl F. Schinkel, Die Nacht, 1816