Aquele som, aquele blog!, estava para os seus ouvidos como o verde dos campos para os seus olhos de castanho-tronco, como o cheiro da terra para o seu olfacto. Talvez por isso mesmo, dos passos que davam pela calçada, friorenta, o pensamento fugia-lhe agora para a aldeia das férias da sua infância, remota, sempre à distância de uma viagem interminável sob um sol de Agosto escaldante.
Sim, recordava-se bem... Era somente ao fim de cinco exaustivas horas que a aldeia se mostrava num vislumbre, mas aquela doce visão expungia por si só e com alvoroço o cansaço abrasador que lhe ia inscrito no corpo de criança.
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E ali estava a Estrela, tão perto de si, a elevar-se majestosa e alcatifada de verde! E ela virava-se no banco de trás para poder admirá-la e reavivar aqueles cambiantes nas retinas da sua memória. E o cheiro do ar! Tão diferente do da cidade que deixara horas antes! Cheirava ali a terra e a mimosas, a pinheiros e eucaliptos, a giestas e rosmaninho, a rolas e pardais.
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Depois eram mais quinhentos metros até ao "povo" - assim chamavam ao aglomerado de casas-, onde se podia ver a capela e o largo do coreto, a venda do Costa, a grande quinta dos Garcias e umas casas mais pequenas, todas em granito, com escadas ásperas - que às vezes faziam sangrar impiedosamente os joelhos - alpendradas e, ao rés do caminho, as «lojas», donde saíam mugidos e rumores de palha mexida.
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Porém, a sua casa ficava situada num ponto alto afastado do povo, quase isolada. Era a última. E para ela era aquele o lugar mais lindo da aldeia.
E continuavam a subir ligeiramente... chegavam ao outeiro, um largo com casas dispostas em quadrado e uma fonte, onde as mulheres iam encher os cântaros de barro e os pequenitos chapinhavam na água transbordante. Ainda se lembrava de como o coração lhe batia , forte e rápido, quando chegavam a esta etapa do percurso. É que do outeiro até lá cima, à casa, era um abrir e fechar de ohos. E era quando um bando de garotos descalços e tisnados do sol saía a correr dos seus alpendres e se agarrava à traseira do automóvel, guinchando e rindo. Eram os seus companheiros de brincadeiras que faziam com que, durante aquele mês, os dias fossem tão breves como o relampejar de uma estrela cadente.
E era o pai que sorria... - e que saudades sentia ela agora do seu sorriso franco e já ausente! E o carro que subia devagar e aos solavancos aquele caminho pedregoso e estreito, onde em tempos
idos teria corrido um alegre ribeiro... E as silvas cheias de amoras gordas e negras que arranhavam os vidros... E ela que, voltada para trás, ria para aqueles amiguinhos, sentindo a cara a latejar, sonhadora, das mil e uma brincadeiras que iriam inventar nesse verão: piqueniques no pinhal, festas de anos imaginárias em que os bolos eram feitos com terra e decorados com rosmaninho, passeios na carroça do tio, tardes de baloiço nas mimosas, jogos de escondidas ao luar... E conseguia ainda sentir a alegria daqueles garotos perante a novidade repetida que ela era ali, acabadinha de chegar da capital que eles não conheciam, de vestidinho airoso e tranças cuidadas. E quando finalmente chegavam a casa... As pernas tremiam-lhe de emoção. A Esperança e os cinco irmãos faziam-lhe perguntas; trocavam-se beijos. Depois subia as escadas a correr, galgando os degraus dois a dois, e da varanda alpendrada lançava para o longe um olhar ávido e certeiro sobre os campos cultivados em retalhos, mergulhados numa paz completa. Mais perto, o pinhal, à direita, manchava de verde escuro e sombras a paisagem verde e estava ali a dois passos de si; o olival mesmo em frente, cheio de rolas cantantes, e atrás da casa, a courela com os seus frutos, que ela adorava colher e comer logo, à dentada e por lavar.
Num ápice, a bola de borracha verde e amarela saltava alvoroçada de degrau em degrau, escadas abaixo, e passava de mão em mão. Mas a mãe vinha chamá-la para a sesta, alegando um cansaço que ela já não sentia.
E o sino da capela parecia saudá-la com as suas três badaladas, enquanto a Esperança e os irmãos iam em grande correria e gritos, caminho abaixo, espalhando ecos e esperanças, esperanças e ecos...ecos...ecos...para voltarem mais tarde.
O pulsar dolente e incansável das cigarras tentava em vão embalá-la, quente, a ela que, com o coração na cabeça, fingia dormir mas apenas sonhava...
Os bichos do campo não dormiam a sesta...
9 comments:
Lindo!
Que bela descrição desse Lugar mágico, dessa Aldeia.
Foi como se estivesse lá.
Foi também um relembrar da minha infância.
Escreves tão bem.
Parabéns!
Continua.
Beijinhos,
Obrigada pelas tuas palavras de incentivo! Ainda bem que gostaste.
Tentarei escrever mais.
Beijinhos!
A Berenice escreve que é uma categoria! É um dom sabia? Há muita gente que nem com técnicas de escrita lá vai!
Um abraço amigo,
Daniela.
O seu comentário dá-me alento para continuar. Oxalá consiga!
Beijinhos gratos!
Estou a ver que consegues!
Beijinhos e bom fim de semana.
Para um transmontano quanto eu...um texto destes leva-nos de facto por longos e demorados instantes a pensar na terra que nos viu nascer!! Adorei....Muito bonito!!! Lamento a falta de actualização mais regular, mas esta é a tua casinha, arruma-la-ás quando quiseres e sempre que quiseres!! (enviei-te mail ontem à noite, saberás porquê)
Obrigada por teres visitado o meu blog, gostei muito, e também pelo simpático comentário que deixaste.
Tens muita razão: a casa está muito desactualizada, mas é o que se pode arranjar. Quem anda ao sabor da inspiração e do momento, depois de muito ter amadurecido as ideias, é assim. Melhores dias virão. Vou tentar ser mais assídua.
Beijinhos.
Olá Berenice,
Vim aqui espreitar mais atentamente e deparou-se-me este texto sobre uma visita a uma aldeia (há tantas, tantas por essa Portugal fora, cada qual com seus próprios matizes) e para além dos pormenores descritivos,fiquei com a sensação que o seu ritmo é uma poesia em prosa, uma água a gorgolojar de pedra em pedra. Até os cheiros das flores, dos lugares se sentem...
Parabéns. Não há palavras que descrevam o que uma visita assim, nos proporcionam.
Escreves como a água a correr
Transmites saberes e sabores
Vês com os olhos de todo o SER
Abres a porta a todos os amores.
Parabéns.
Voltarei mais vezes.
José António
Lindissimo, que fluência de imagens, cores, cheiros e sons. Este é texto é muito melhor que o outro. PARABÉNS. Bjs.
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